Thursday, February 15, 2007

M E U P A I

“Ele é alto. Possuidor de um belo e nobre porte. Assim como é possuidor de uma rara inteligência, que eu não chamaria somente rara, mas inspirada talvez por Deus. Possui muitos cabelos brancos. Atualmente quase todos os seus cabelos são brancos, mostrando ao mundo as preocupações, os sofrimentos e a vida agitada por que passou. Anda sempre vestido de terno. Talvez por hábito, mas incrível, nunca o tira, exceto para dormir. Desde criança que eu o admiro. Vejo-o como um herói dos contos românticos e fico estupefato quando tomo conta da realidade, que meu pai passou em toda sua vida. Não foram reais? Então porque imagina-lo um herói, sendo ele já um herói? Um herói anônimo legitimo. São poucos os que o conhecem e esses poucos ficam boquiabertos quando dialogam com papai. Não é padre, mas conhece o latim e prega com êxtase o Evangelho. Não é homem publico, mas conhece a política, talvez mais ainda que aqueles a fazer dela sua vida. Em resumo: discute-se com papai qualquer assunto político e ele tem a sua opinião formada. Não abre a boca para dizer coisas inúteis. Quando ele vai falar, eu preparo o meu bornal auditivo porque sei que cairão somente, nesse bornal, palavras de alto quilate gramatical.
É assim o meu pai e muito mais. Gostaria de ser um Humberto de Campos, ou um escritor qualquer para poder descrever aqui o belo carater que possui o meu honrado pai. Mas, infelizmente a minha intelectualidade não chega a tal ponto. Posso afirmar, entretanto que o meu pai é um homem, cuja têmpera o mundo quis esconder, porque este mesmo mundo o reconheceu grande demais para a mesquinhez a que está submetido atualmente.
Jaú, 31 de julho de 1965
Jeovah de Moura Nunes”
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Caro irmão Douglas,

"Reproduzi o velho texto acima, ainda no verdor de meus vinte anos, porque fiquei deveras emocionado ao me deparar com a biografia de meu pai, Alberto de Deus Nunes, neste Jornal dos Bairros, datado de 16/30 de Abril do corrente ano, (2002). Ainda mais com a sua antiga fotografia, cujo olhar, sereno olhar, deixou-me atônito. A ponto de ir as lágrimas.
Ele parecia me repreender. Parecia querer falar comigo. Parecia querer sorrir.
Já fazia muito tempo que sequer ouvia falar dele. E quando me lembro, às vezes na solidão de meus afazeres, a emoção toma conta de mim como se ele estivesse ali presente. O olhar de um pássaro. O olhar de um felino. O olhar gostoso de olhar ao falar de Jesus. O brilho daquele olhar ainda não me abandonou. Nem irá me abandonar. Deus é testemunha.
O texto do Padre David é arrasador! Ele foi muito feliz em suas colocações. Aquele texto é meu pai em pessoa. Narrou com detalhes o episódio que ainda ecoa nos meus ouvidos: a passeata, os xingamentos, as batidas fortes na porta. Minha mãe abraçada a mim e à Nainha, minha irmã, pedia calma e nos confortava. A rua encheu-se de gente num tumulto apavorante. Meu tio, o Zuzinha, ficou próximo à porta com uma peixeira na mão. Meu pai o repreendia dizendo que aquilo era inútil. A confusão demorou. Parecia não terminar. Foi a noite mais longa de minha vida.
Nos dias subseqüentes meu pai notou que era ‘persona non grata” em Picos e decidiu partir para sempre. Já próximo de sua morte, anunciou que desejava ser enterrado em Jaú, uma auspiciosa cidade do interior de São Paulo, onde vivera por muitos anos.
Hoje, Picos é outra. As pessoas são outras. E se existem as pessoas daquela noite, vivendo aí, elas naturalmente nem se lembram mais. E se lembram, certamente será como algo sem importância. Para nós, nossa família, entretanto foi como uma encruzilhada em nossas vidas. Foram tomadas decisões irreversíveis. Partir do lugar em que se nasce não é fácil. Chegar em lugares estranhos pior ainda. Nós, seus filhos, ficamos sem ter o que todos têm: o calor amoroso das tias, dos tios, dos primos, dos avôs e avós. Enquanto ouvíamos as crianças paulistas dizerem: - Hoje vou dormir na casa da vovó! Ou das tias, ou dos tios. Nós ficávamos a lembrar de nossos parentes distantes. O tempo aos poucos foi se encarregando de muitos de nós, esquecerem de todos. E nunca mais voltar ao Piauí.
É triste. É muito triste ser banido de sua própria terra! E também é triste chegar em novas terras, desconhecidas, principalmente no interior paulista, numa época em que a discriminação existia. Era palpável. Era sufocante. Tanto é verdade que nas escolas, nós crianças nordestinas, não éramos aprovados quando o ano terminava. De doze irmãos apenas um conseguiu chegar a faculdade, ainda depois de velho. Isto é: depois que o preconceito se foi. Mas, nenhum de nós passou necessidades. Nosso pai proveu tudo. E até hoje vivemos bem graças a Deus!
Apesar dos pesares"!

Jeovah de Moura Nunes
Jaú, abril de 2002

Jeovah é escritor, poeta e jornalista. Reside em Jaú – SP.
E-mail: jeovahmnunes@hotmail.com

Thursday, January 11, 2007

Alberto de Deus Nunes

PREFÁCIO
"POEMAS DE DEUS"

O livro “Poemas de Deus”,
uma montagem literária que o Douglas, o filho do poeta, teve a feliz iniciativa de publicar, realizando assim o sonho do poeta, é uma dessas surpresas agradáveis que surgem repentinamente em nossas mãos.
Alberto de Deus Nunes foi poeta, escritor, filantropo, professor e jornalista. Faleceu em abril de 1969, na capital paulista, vítima de um derrame cerebral. Escreveu centenas, talvez milhares de poesias que ficaram, em sua grande maioria, perdidas, muitas engavetadas, consumidas pelo tempo. Mas outras tantas se salvaram e continuam vivas, transmitindo todo o ardor do poeta que é imortal; E tanto o poeta como as poesias, jazem presentes nesta manifestação literária, que lhe sorveu todas as suas aspirações no tempo, mas não o alento para apregoa-las.
Fazendo vir a lume esta obra, que por muitos anos permaneceu arquivada, Douglas não ditou esforços. Com tiras aqui e acolá, foi-se juntando poemas e poesias, cultivando, enfim, um todo. Uma obra inédita, inigualável dos anos 30 e 40 e que o Douglas soube como ninguém, registrar até no título, a dor pungente que atingia o poeta durante suas libações artísticas.
Este trabalho que juntou o acendimento criador atrelou além das que já existiam, muitas outras pesquisadas, reunindo uma riqueza literária, tendo como conseqüência para o leitor, o enriquecimento de sentimentos que a poesia transmite, pois se acha atualizada mesmo distante no tempo. A espontaneidade dos poemas, a suavidade do aparo que transmite sentimentos na brevidade dos versos, reunindo as estrofes como a pluma de algodão, tudo se encerra numa acerba obstinação de sobrepujar, por vezes seus próprios ideais; sufocante e áspera qual a dor dos agrados, tudo reunindo esperança, apesar de tudo, apesar da agonia evidenciadas nas letras do trovador.
O livro que estamos recebendo é uma demonstração viva de que, quando podam os líderes sempre ficam o tronco e as raízes presas ao chão. Cedo ou tarde, volta a brotar.
“Poemas de Deus”, não é apenas um broto, ou um ramo, é o próprio rebento gerado que suscita um novo gomo e que podemos saboreá-la através dos frutos nela contida. A própria poesia se declara como sendo um dos canais livres da inteligência, escoando sentimentos retirados do fundo da alma. Tanto no presente volume, como no poeta desaparecido, os sentimentos grafados se mesclam na magnitude da dor que o poeta quis manifestar, assim como na maneira diferente às vezes de sufocar uma paixão, intensamente avassaladora.
Obrigado a você Douglas, que teve a coragem de fazer chegar até às nossas mãos essa verdadeira obra prima da literatura piauiense. Oxalá pudesse existir outras dessa dimensão e assim podermos desfrutar dessa surpresa literária que se iguala às obras dos grandes gênios da literatura.


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DEPOIMENTO

Ainda jovem sacerdote, por obediência aos meus superiores, vim residir em Picos, como vigário desta Paróquia, em setembro de 1947.
Tive, é certo, as minhas dificuldades.
Logo me apercebi, porém, que estava no meio de um povo acolhedor, de uma gente simpática, em grande parte ligada a mim pelo parentesco ou por laços de amizade de famílias. Conquistei muitos novos amigos, tornando-me mais forte, mais rico. Lemos no Livro do Eclesiástico (6,14): “Um amigo fiel é um refúgio poderoso, e quem o encontra, achou um tesouro”. Destes amigos, uns passaram a residir em outras paragens, outros se foram para a Eternidade, a chamado do Pai, Senhor da Vida, Senhor da morte.
Alberto de Deus Nunes, amigo fiel, foi um destes que se foram.
Primeiramente, em 1953, passou a residir em São Paulo. Depois, em 1969, se foi para a derradeira morada.
Apesar da distância no tempo, lembro-me perfeitamente do perfil, moral e físico, de Alberto Nunes. Era um forte, de corpo e de espírito. Pelas circunstâncias do tempo, não lhe foi possível conquistar lauréis universitários. Doutorou-se, porém, na Escola da Vida, tornando-se um autodidata, um “self-made-man”, como dizem os de língua inglesa.
Estudioso, o cabedal que entesourara na mente por esforço pessoal, sentiu-se na obrigação de transmiti-lo a outros. Para isto, ele foi professor.
Sensível aos problemas humanos, quis externar a outros as suas inquietações. Para isto, foi jornalista.
Os sentimentos mais nobres do seu coração transformou-os em belos poemas. Ele foi poeta, e que poeta!
Generoso, tinha o coração, as mãos e a bolsa abertos para os pobres, os detentos, os mais necessitados. Sabia repartir o pão, segundo os ditames de Jesus de Nazaré. Era um filantropo.
A maior riqueza do seu coração – o amor – dividiu-o primeiramente com Honorina Andrade, sua primeira esposa, que Deus levou logo ao nascer o primeiro filho, que logo depois a acompanhou na grande viagem da morte.
Foi um impasse difícil na sua vida, mas ele soube supera-lo heroicamente.
Casou-se em segundas núpcias com Almerinda Moura, nascendo-lhes deste enlace doze filhos. Bom esposo. Bom pai de família. Bom amigo. Tinha bom caráter, mas era inflexível nas suas decisões, quando as considerava corretas.
Lembro-me de um episódio de sua vida, que muito o magoou. Foi uma verdadeira prova de fogo para a sua dignidade de homem público.

Funcionário federal nesta cidade, foi, pelas autoridades do ensino, designado para fiscalizar as aplicações de provas no Ginásio de Picos. Uma vez que não podia fazer-se presente por ocasião dessas provas, ele, confiando no diretor e professores daquele estabelecimento, rubricava com antecedência as folhas oficiais das referidas provas.
Sentindo que estava sendo enganado, reagiu decididamente, recusando-se a rubricar tais folhas. Este fato acarretou-lhe sérios dissabores. Foi ele insultado, humilhado. Os alunos do Ginásio movimentaram a cidade. Fizeram programas de protesto numa amplificadora que funcionava na Praça Félix Pacheco, na chamada “Esquina Ideal”, tachando o professor, o jornalista, o poeta Alberto Nunes de analfabeto, entre outras coisas. Não satisfeitos, encenaram o seu enterro simbólico. Fizeram um caixão, cobriram-no de pano preto e de tarjas, e, parece incrível, saíram pelas ruas, uma cruz à frente. Uma aluna, vestida de viúva, carpia perto do caixão. Os outros, abraçados, cada um com cada uma, chorando alto, com velas acesas nas mãos, seguiam atrás.
Encontrando-me com o tal cortejo, eu protestei fortemente contra a profanação da cruz, levada num motim de estudantes. E pedi que a retirassem. O diretor do Ginásio, ou não quis, ou não soube, ou não pode evitar aquele drama nunca dantes visto, nem depois, na história desta boa, pacata e cristã cidade de Picos.
Apreensivo, dirigi-me para a casa de Alberto Nunes, então na hoje chamada Avenida Francisco Santos.
Afirmou Cícero, no seu livro “Da Amizade”: “Amicus certus in re incerta cernitur” – o amigo certo se reconhece numa situação incerta.
A situação para Alberto, naquelas circunstâncias, era incerta. E eu, e José Soares, procuramos ser amigos certos. Fomos visita-lo. Ficar ao seu lado, ao lado de sua esposa, dos seus filhos.
Encontramo-lo calmo, corajosamente tranqüilo. Aconselhamos-lhe que fechasse porta e janelas da casa, receosos do que fariam os manifestantes quando por ali passassem.
Felizmente, não houve nada contra ele. Deixaram apenas, nos batentes da porta e das janelas, as velas acesas, chorando lágrimas de cera, triste epílogo daquela encenação que bem merecia lágrimas de verdade.
Acredito que no mais íntimo do coração de Alberto Nunes, medrou um ressentimento profundo, por se ver assim tratado em sua própria terra, pela sua própria gente, sem nenhuma solidariedade por parte do seu próprio povo.
Talvez em conseqüência deste acontecimento lastimável, ele tenha decidido mudar-se para São Paulo, enfrentando toda sorte de dificuldades.
Alberto de Deus Nunes foi um forte. Lutou como um bravo, que não se deixa abater diante dos desafios da vida. Pode-se dizer que morreu pobre, como pobre viveu. Foi rico de coragem, de valor pessoal. E de filhos. Teve-os doze, seis nascidos em Picos; e seis em São Paulo. Prova bem patente de que confiava na Divina Providência.

Filho obediente da Igreja começou a morrer numa igreja, a de São Cristóvão, em São Paulo. Pela manhã saíra de casa em boa forma, alegre, para uma reunião de pais e mestres. Na volta, foi encontrado passando mal dentro daquele templo . Não se sabe se ele ali chegara antes ou depois do mal imprevisto que o acometera. Pessoas caridosas o socorreram. Por uma carta encontrada no seu bolso, descobriram o seu endereço. O quanto não sofreu Almerinda naquela ocasião. Quanto não sofreram também seus filhos. Levado para hospitais, não encontrou recursos que o salvassem da morte. Faleceu no dia 13 de abril de 1969.
Que a fé cristã, que nunca lhe faltou em vida, tenha-lhe servido de fanal, na sua saída deste mundo dos homens, nem sempre bons, e ingresso no Céu de Deus, sempre Bom e Misericordioso.
Um dos seus filhos, o Douglas, desejando escrever um livro sobre o seu heróico progenitor, e sabendo de minhas ligações de amizade com ele, pediu-me um depoimento.
Aqui está o meu DEPOIMENTO.
Sobre ALBERTO DE DEUS NUNES
Picos, Piauí, 25 de janeiro de 1987

Padre David Ângelo Leal.
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Obs.:

O Depoimento acima, que me foi entregue pessoalmente pelo próprio Pe. David, a meu pedido, no dia 25 de janeiro de 1987, encontra-se na íntegra, sendo por isso mesmo legítimo e verdadeiro.

No livro Manifestações Poéticas, que somente as poesias e o depoimento se salvam, esse trecho foi extirpado, arrancado como partes de um fruto. Por quê? Me pergunto: Por quê partes de seus escritos foi suprimida?

As poesias estão dispostas no livro tal qual como foram definidas há 18 ou 19 anos atrás quando varrí o mundo para as publicar não logrando êxito.

Douglas Moura Nunes

Picos, 01 de março de 2007
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A P R E S E N T A Ç Ã O

Solicitado pelo meu irmão Douglas, o artífice material desta obra, para falar algumas palavras sobre o meu pai, senti-me comovido. Falar de meu pai sempre me comoveu. A herança espiritual deixada por ele é tão vasta, que dificilmente passo um dia sequer sem usar pequenas fórmulas de grandes filosofias saídas de seus lábios. Poderia ter sido um afortunado poeta, presente em ateneus de preciosos mármores, mas preferiu os escaminhos anônimos e sem privilégios de um lar, com a esposa e doze filhos a lhe atormentarem o intelecto inflamante. Posso dizer que mesmo numa advertência, ou numa surra corretiva, o que se notava em meu pai era a suavidade da voz portadora de uma linguagem escorreita, onde o verbo brincava nos ouvidos e cintilava no coração. Ele tinha o dom da palavra. Sua poesia foi destilada para nós outros da família, quando pertencia ao mundo. Daí nossa responsabilidade de propagar as que minaram aqui e acolá.
Nascido no lugar Lagoa Grande, Município de Picos, no dia 25 de abril de 1913, Alberto nunca freqüentou uma sala de aula. Na adolescência dedicava-se à confecção de livros e outros manuscritos que encontrava. Costumava refugiar-se, ora em seu quarto, ora à sombra das árvores na companhia dos livros, compenetrado em instruir-se e apurar a leitura. Sobraçava livros, almanaques emprestados. Copiava dicionários inteiros aperfeiçoando assim sua grafia e seu saber.
Até os quatorze anos era gago quase irrecuperável. Curou-se pela força de vontade inerente ao seu espírito. Vivia a discursar horas a fio, como se estivesse diante de uma multidão. Seu pai (meu avô), Benedito de Deus Nunes, tinha modesta barbearia na sala da frente, na hoje atual Av. Getúlio Vargas. Os fregueses ouviam os discursos daquela criança e saiam convencidos de que ali estava um caso triste de debilidade mental. Era difícil convencer as pessoas incrédulas do lado certo das coisas, naqueles tempos idos. Como soubera nosso poeta que treinar era o único recurso? Era, evidentemente, difícil conciliar o sertão de parcos recursos com a susceptibilidade latente e por vezes muito viva presente em sua alma inquieta.
Reabilitado da gagueira, parte para Fortaleza no ano de 1932, sobraçando livros e cavalgando um jumento, porém com lágrimas nos olhos. Amarga alguns meses a distância da família que em sonhos vêm fazer visita. As buzinas demais enjoadas ainda hoje em Fortaleza o serão em 1932, nos versos simples e puros?
É nessa época que a efervescência incontida da verve começa a desabafar suas libações artísticas, num cenário nada poético do Nordeste. Passados quase um ano, deixa as terras de Iracema e regressa ao lar paterno que ele denominava fagueiro. Retoma o trabalho de aprendiz de alfaiate e reinicia os estudos, tornando-se assim autodidata. Passa agora a ensinar. Mas não pára de escrever. A década de trinta absorve-lhe toda a sua juventude em estudos, trabalhos, por vezes até pesados, e a rotina da burocracia, certidões e cartas que lhes eram solicitados, face à leveza com que escrevia.

Em 1937 é contratado pela Vila de Jaicós, distante 50 quilômetros de Picos, para lecionar. O nosso poeta vencia duas vezes por semana tal distância no lombo de um eqüino durante horas. Tudo pela sobrevivência, mas, sobretudo pelo amor à propagação do conhecimento. É nessa escola simples que trava amizade com Honorina Coelho de Andrade, a qual também lecionava.
Como acontece nas histórias dos poetas, talvez pelo sublimado romantismo ou pelo amor imenso que dedicam às pessoas, meu pai casa-se com a professorinha em meados de 1937.
Contudo, como ele mesmo afirmava: -“A felicidade não é deste mundo”, no dia 24 de junho de 1939 morre Honorina, possivelmente de uma hemorragia pós-parto. Imagino aqui comigo o seu sofrimento interior, quando este moço é poeta, é artista amante das coisas mais puras e sacrossantas em sua vida humílima. Só uma pessoa assim é que sabe delinear a dor em todas as suas fases. Todavia, poeta é poeta e o amor não se esvai. Ele cresce como um leque e numa das extremidades refulge outro grande amor em forma de mulher. Casa-se com Almerinda Batista de Moura no dia 12 de outubro de 1940, já com seus 27 anos bem vividos.
Por esta época, era muito dado à política. Consegue, em razão disso, um cargo na Prefeitura de Picos, como Fiscal de Rendas. Cargo este decorativo, uma vez que o Prefeito o tinha sempre ao seu lado, como seu Secretário. Substitui por várias vezes o Prefeito e passa também a proferir seus próprios discursos. Em 1946 viaja à Capital Federal, na então cidade maravilhosa Rio de Janeiro, em busca de melhores condições de vida, onde trabalha por três anos como correspondente na Empresa Americana Park-Davis Corporation. Retornando a Picos em 1949 trazendo na bagagem um novo e revolucionário conceito jornalístico e procura empreender em sua cidade, com a fundação do Jornal “A Ordem”, juntamente com outros idealistas da época. Em suas páginas artigos pujantes e crônicas excitantes transformaram o mundo intelectual e os valores sociais dos administradores, isto é, passam a ter nova visão, com soluções objetivas, edificantes e não apenas divagações semânticas como era de moda. Por exemplo: foi um dos primeiros a denunciar no jornal o excesso de migrações de nordestinos para São Paulo, dando, evidentemente, soluções para fixar o homem à terra. E isto em 1950. Tinha várias idéias revolucionárias para a época, uma delas seria a construção pelo governo federal de uma linha férrea ligando Petrolina a Teresina.
Em 1952, Alberto Nunes era funcionário Público Federal, exercendo o cargo de Coletor Federal em Picos, e muito ligado ao jornalismo, onde escrevia como já foi dito, crônicas, artigos, poemas, contos etc. Como funcionário federal, foi designado a fiscalizar as aplicações de provas no Ginásio de Picos. Confiando no diretor e professores, rubricava com antecedência as folhas oficiais das provas. Sentindo que estava sendo enganado, recusou-se a rubricar as provas. Este fato acarretou-lhe sérios dissabores. Foi ele insultado, humilhado. Fizeram um caixão e cobriram-no de pano preto com uma cruz à frente, como um enterro, levando até em frente à sua casa, na hoje atual rua Francisco Santos. Tachando o professor, o jornalista, o poeta, o escritor Alberto Nunes de analfabeto, entre outras coisas.
“O texto do Padre David Ângelo Leal é arrasador! Ele foi muito feliz em suas colocações. Aquele texto é meu pai em pessoa. Narrou com detalhes o episódio que ainda ecoa nos meus ouvidos: a passeata, os xingamentos, as batidas fortes na porta. Minha mãe abraçada a mim e a Honorina, minha irmã pedia calma e nos confortava. A rua encheu-se de gente num tumulto apavorante. Meu tio, o Zuzinha, ficou próximo à porta com uma peixeira na mão. Meu pai o repreendia dizendo que aquilo era inútil. A confusão demorou. Parecia não terminar. Foi a noite mais longa de minha vida.
Padre David em seu depoimento, foi corajoso, sincero e verdadeiro. Deu-nos o mesmo sentimento que dera a Alberto naquela época, ao postar-se ao seu lado, ao lado do amigo, ao lado do mais fraco, ao lado da coragem. Nos dias subseqüentes meu pai notou que era “persona non grata” em Picos e decidiu partir para sempre”. (sic).
Naquele mesmo ano de 1952 veio a transferência para a cidade de São Simão, no interior do estado de São Paulo. Enfrentando todo tipo de dificuldade, parte Alberto Nunes com toda a família para o desconhecido, para uma região onde predominava o frio, em temperaturas abaixo de 0º, castigando furiosamente os viandantes desavisados do frio, além, sobretudo, do preconceito aos nordestinos, mormente existente nas escolas do interior do estado de São Paulo naquela época.
Em meados do ano de 1966, treze anos depois, Alberto Nunes torna à sua cidade natal em passeio, revendo por quarenta dias todos os seus. E em Teresina onde reencontra a irmã querida de suaves cabelos brancos Isaura Nunes Santos. Retornando a São Paulo, acompanha-o uma dor atroz, ingerida na alma, para nunca mais regressar àquela que ele chamava, lar fagueiro.
Acerba dor da saudade, então, se abate sobre o poeta e na dor pungente, escreve lindos versos dedicados à sua terra natal, encerrando contatos com a família amada, pais, irmãos e irmãs, seu lar fagueiro, o seu rio Guaribas de águas cristalinas, enfim, de seus ideais e de seus leais amigos.
Em 1968, residindo à Rua Dom Antonio de Melo, nº 93 no Bairro da Luz, na capital paulista, Alberto Nunes funda o jornal “Alvorada”, semanário de assuntos fiscais e literários que circulava de terça à sábado. A fundação do Jornal, era uma última tentativa de produzir algo valioso e poético e literário, apesar de ser um jornal em que trazia assuntos fiscais e editais de balanço e imóveis, era também um último recurso para minimizar as despesas do lar numa família numerosa composta de 14 pessoas.
Temente a Deus, Criador de todas as coisas, Alberto Nunes começou a morrer numa igreja, a de São Cristóvão na Av. Tiradentes, em São Paulo. Foi encontrado passando mal dentro daquele templo. Levado para hospitais, não encontrou recursos que o salvassem da morte. Faleceu no dia 13 de abril de 1969.

Hoje, passados 36 anos de seu falecimento, descobrem-se através de estudos aprofundados, o grande número de poesias e trabalhos em publicações em jornais, livros e revistas de cidades do interior de São Paulo, como São Simão, Bauru, Macatuba, Ribeirão Preto, Jaú, Limeira e Barra Bonita. Em reconhecimento a muitos serviços prestados, a Prefeitura Municipal de São Paulo homenageou-o com nome de rua no bairro do Tremembé.
Aproveitando o Depoimento do Padre David Ângelo Leal, que reputo como prestimoso e sincero, meu pai deixou realmente uma obra inacabada, cujos filhos em número de doze procuram aqui e ali costura-la. São as pinturas da mana Isabel, o sonho artístico com as tintas do Percival, as reivindicações do Jales, a excessiva leitura do Beto, a calma do Benedito, a expansividade da Josina, a destreza do Noca, a minha vontade de escrever, a novação rica de detalhes do próprio Douglas, as providências burocráticas do Américo, o recolhimento da Nainha e finalmente a humildade da Goretti. Todos possuem algo do gênio de meu pai, uma pessoa turbilhonada de paixões, incrivelmente cheio de façanhas realizadas em Picos e fora de Picos e, no entanto, “desconhecido ficou em sua bruma”, tão bem dito em sua última poesia, escrita três dias antes de morrer.
Escrevo, portanto, vivendo a paisagem do CASARÃO de meu querido e saudoso Américo de Moura Santos, pai de minha mãe e já vivendo as delícias do mundo espiritual, abrindo este livro que considero um dos melhores já impresso nestas bandas do Piauí.
Fico feliz e surpresa ao receber a informação de que a poesia intitulada PICOS, recebeu o primeiro lugar no Concurso Literário promovida pela UNE de Picos, em abril de 2.000. Na oportunidade, o presidente da UNE, lembrou a necessidade de se “redescobrir o poeta. Trazer de volta à vida a obra desse que foi no passado de Picos, um idealista, escritor, poeta e professor, um homem comprometido com o seu tempo, pois Há Homens que Nascem Póstumos”. - “Alberto Nunes foi um poeta e um artista que pintou (brincava) com as palavras e aprisionou o tempo e os versos”.

Jeovah de Moura Nunes
"Jeovah de Moura Nunes é poeta, escritor,
crítico, jornalista
e camelô. Tem vários livros publicados e outros vários livros em andamento.
Reside em Jaú - Estado de São Paulo.


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SONETO QUE ME CRUCIA


Vou partir pesaroso e sombrio,
Vou partir transpassado de dor!
Separando-me, em pranto eu sorrio,
Para em choro cruel não me pôr!...

Vou deixar dentro em breve os meus pais,
Vou deixar cinco irmãos bem queridos!
Qual momento pungente que faz
Uma família em doentes gemidos!...

Cara mãe! Ainda mais um adeus!
Um adeus que escrevo chorando,
Afogado em soluços pr´os céus!...

E papai que os poderes são seus,
Dê perdão a seu filho errando!...
E adeus, pai, irmãos, mãe, adeus!


Picos, 02/06/1933




EU


Aos vinte e cinco do mês de abril
Do ano treze, às dezesseis e meia,
Nasceu em Picos, Piauí, Brasil,
Uma criança cabeçuda e feia.

Esse vivente, na vida infantil,
Jamais gozou além da pança cheia
Mas hoje – ai, Deus! – na quadra juvenil
Nem sempre come, porque muito anseia.

E escreve versos – dolorosa tese!
Carpindo a vida cruciante e acerba,
De certo por vir dum presságio treze...

Seu canto – o treno de quem já morreu
Sentindo o mundo na infernal soberba
Assina, ressentido, o nome meu...




DEDICATÓRIA


Caro patrício que ler este livro,
Não me leveis à incredulidade;
- Se o livro é pobre, não tem estrutura,
Mas mostra uma força de vontade!...

Se nele vedes falhas de aprendiz
Feios senões em grande quantidade.
Lembrai-vos de que só por mim foi feito
E que eu só tenho a força de vontade.

Vejo que não mereço o tal desprezo
Que dão os ostentosos da vaidade.
A eles não envio este livrinho,
- Não sabem o que é a força de vontade.

Em face do saber eu só possuo
A natureza e a curiosidade;
Sou pobre e aqui nasci, sou sertanejo
- Não tenho a mais da força de vontade.

Devemos dar somente o que podemos
Pois, pra estudar com mais facilidade
Foi que fiz este livro que vós tem
A vós, pois, uma força de vontade.




PICOS


Emoldurado caprichosamente
Por um rosário enorme de colinas
Agita-se entre quérulas buzinas,
A linda Picos, gárrula envolvente.

Banhada pelas águas cristalinas
Do plácido Guaribas, certamente
Minha cidade é muito florescente,
Por suas qualidades peregrinas.

Que belo vê-la sempre atarefada!
De música, de flores enfeitada,
Suando na canícula do clima!

Que singeleza em todos os seus prédios!
Mas que colosso a igreja dos Remédios,
Em que seu povo todo se sublima!




A MERETRIZ


Somente a meretriz, ao que parece,
Dos preconceitos vive independente
Porque vivendo depravadamente
Nenhuma lei ou norma ela obedece.

Tristíssimo destino o dessa gente
Tão livre, mas, que infelizmente esquece
Que, alegre e descuidada, permanece
No cárcere do vício repelente.

Escrava voluntária do pecado
É, todavia, o triste resultado
Do convencionalismo que envenena.

Pobre mulher! Não fiques muito tarde
Mercadejando a carne, vil, covarde
Levanta-te, qual nova Madalena.




A PROSTITUTA


Escandalosamente destronada
Dos paramos divinos da pureza,
Passeia, alegre e desavergonhada,
Bonita moça aqui da redondeza.

Exibe-se, oferece-se coitada!
No trágico mercado da impureza
Sedenta de prazer, narcotizada,
Vegeta a pobre vítima indefesa.

Mas quantas prostitutas disfarçadas,
De puras e santinhas rotuladas
Não há, sobrepujando as meretrizes?

Tumores asquerosos da maldade
Essas figuras, na sociedade,
São mais covardes e mais infelizes.



O MEU BRASIL


País tão novo, tão forte e fecundo
Como esta terra de grandeza mil,
Não há quem veja um outro no mundo,
Nem quem descubra oculto outro Brasil!...

Oh! Que beleza vê-se nesta terra!
-- Um paraíso de vida grácil...
Como é feliz a gente que descerra
Os olhos virgens neste meu Brasil!

Oh! Que fulgores tens nesta amplidão!
Que lumes de ouro neste céu de anil!
Grandeza infinda neste meu sertão,
No litoral e em todo o meu Brasil!...

Dizer, quem há de, meu país de amores,
O dom que tens assim primaveril?!...
-- És tão florido que nas tuas flores,
Ébrio, eu não falo – Sinto o meu Brasil!...

Extasiado, fico mudo em ti...
E sou feliz na quadra juvenil!...
Mesmo afastado no meu Piauí,
Conheço e sinto o meu grande Brasil!...


Picos, 1.935




O POBRE


Ser pobre no Brasil é ser ninguém.
É ser trambolho que se evita e se afasta.
Lei que o protege logo se desgasta,
Na má vontade dos que tudo tem.

Até lhe dão a pecha d´uma casta
Humana inferior e vil, a quem
Falta a cultura, falta todo o bem,
Por força d´uma sina assaz madrasta.

Por qualquer erro o pobre é logo preso,
Cumpre sentenças longas, sofre o peso
De uma justiça oriental de xátria.

Porém, o pobre é povo, é maioria e,
Se algum dia houver democracia,
Teremos nele a salvação da Pátria!




PICOS, MINHA TERRA


Esta minha terra amada,
Que é por Picos batizada,
Me embeleza, me seduz...
É que ela é a natureza
De mais luxo e mais beleza
Que já fez o bom Jesus!...

Esta terrinha daqui
É do grande Piauí,
Território do Brasil.
É cidade florescente,
Dá vida pra toda gente,
Nada em minha terra é vil.

Tem comércio, tem usina,
Tem lavoura muito fina
E tem criação de gado.
Faz mui grande exportação,
Minha gente tem ação
- Trabalhar é o seu fado.

Minha terra tem amores
Na brisa com seus rumores,
No vergel doce e fagueiro
Que fica dentro do muro,
Do qual sinto o que figuro
Neste canto de roceiro.

Quisera que as nove Musas,
De inspiração inconfusas,
Ajuda sem minha pena
Para, como Casimiro,
Cantar em doce suspiro
Minha terra nesta cena.

Minha terra, amado berço,
Onde à noite rezo o terço
Sempre ao lado de mamã.
Terra de vergel de amor,
Do vergel que me dá flor
A Laurita, minha irmã...

Minha terra é tão formosa,
Tão gentil e tão mimosa
Por ter tanta poesia...
Quem será que nesta terra,
Vendo o que nela se encerra,
Não se encanta e se extasia?

Qual será seu habitante,
Ou mesmo qualquer passante
Que não vê a primazia
De Deus neste paraíso?
Tirai a prova a juízo,
E vereis que poesia.

Vereis que temos riqueza
Nesta terra qual princesa
No seu leito a espreguiçar-se,
Não se vê promiscuidade;
Do trabalho, na verdade,
É difícil descansar-se.

Vereis belas serrarias
Caternas de cercanias,
Arvoredos seculares
Carnaubeiras gigantes,
Coxilhas tão verdejantes,
A natureza em seus cantares.

Vereis que tenho razão
Em contar, nesta canção,
Estes revérberos seus;
E que é sua poesia
Que me dá tanta ufania,
Pra contar o que fez Deus...

Minha terra sendo assim,
Cheia de tanto festim,
Furtar-me-ia a bendize-la?
-Não! Em mim por ela pulsa
Meu coração, que em repulsa
Viveu tempos, por não vê-la.

Sim; Já conheço a saudade
- A grande contrariedade
Que fenece um coração
Em viver longe carpindo
Crua ausência; a dor sentindo
Por não ver o meu torrão...

Foi minha terra que deu,
Com todo esse encanto seu,
Poesia à minha pena!
Porque foi por sua causa
Que na ausência, numa pausa,
Rimei saudade serena!...

Quem me deu a poesia
Foi meu ninho de alegria
Suscitando-a na saudade!
Portanto é terra bendita
- Picos, toda a minha dita;
Minha mor felicidade!...

Terra da minha inocência,
Em que naquela indolência
De precoce e leda vida,
Balançava-me em cipós
Que fortes, lisos, sem nós,
Viam-se em sombra querida...

Terra das azuis falenas,
Em que nas tardes amenas
Ia vê-las no regato.
Via então grandes contendas;
Bofetadas estupendas
Chega, era mesmo um fato...

Minha terra vou finalizar,
Já estou rouco de cantar
O que justamente és.
Contei o que é ser picoense,
Fui-te fiel, ninguém pense
Que eu seja de vil jaez.

Já que grande é minha terra,
Com seu rio e tanta serra,
E eu sou ente sem valor,
Peço a Deus olhe pra mim,
Pra que sempre cante assim
Hinos à obra do Senhor!

Esta minha terra amada,
Que por Picos é chamada,
Me fascina e seduz.
Ela é meu querido berço,
Onde à noite rezo o terço
Ao Coração de Jesus...




M I N H A I N F Â N C I A


Como triste vou contar
Algo de quando em criança
Desfrutei, com segurança,
Da inocência seu cantar!
Sou mui triste, na verdade,
E mais, por ser a saudade
Que dá tédio a esta idade
A que vivo a experimentar!...

Foi deveras bem gozado
Esse tempo de folguedos,
Em que eu sempre com brinquedos
Achava tudo encantado!...
-- Fazia na várzea cenas,
Corria atrás das falenas,
Via as marrecas serenas,
Na lagoa a todo nado...

Punha a “funda” em forte ação
-- Matava muitas casacas;
Pegava aquelas mais fracas,
Dava-lhe sua extinção.
Mas as do papo amarelo,
Na gaiola, com farelo,
Trancava-as para o magrelo
Do Zuzinha, meu irmão...

Era vida de regalo!...
-- Via a altura do urubu,
O horário da nambu,
As corridas dos cavalos;
As borboletas voarem
As flores, para beijarem,
Ouvia os machos piarem
E o cantar forte dos galos!...

Nunca vi felicidade,
Tamanha glória na Terra
Que dê tudo quanto encerra
A nossa precocidade!
-- Quando me lembro daquela
Mania de ir pra janela,
Para ver a grande tela
Do Mundo em festividade...

Oh! Meu Deus, quanta lembrança...
Me crucia a paciência!
Tende, Senhor, a clemência
De os meus tempos de criança
Não me viverem na mente!
-- E então, muito contente,
Rezarei, constantemente,
Por tão feliz aliança!...

Mas, continuo a pensar...
E me lembro da palestra
Daquela sonora orquestra
Das aves a gorjear...
Lembro-me do boi pintado,
Que dizia ter comprado
Para, depois de domado,
Sorridente passear...

Lembro-me também da roça,
Onde vigiei arroz;
E só voltava depois
Das seis, para a nossa choça.
Lutava com passarinhos
Que queriam os cachinhos
De arroz, inda novinhos,
Sendo grande faina nossa...

Em junho ia às novenas
Rezadas a Santo Antonio;
Satisfeito e mui risonho
Cantava-as, junto às dezenas
De pessoas ao redor;
Sabia todas de cor,
E no altar sempre ia por
Em ordem as açucenas...

Tudo achava deslumbrante
Como inda são as manhãs.
Minha mãe, minhas irmãs,
Eram meu tesouro infantil...
Assim cheio de alegria,
Não pensei que a poesia
Me fizesse companhia
Pra sentir vida penante...

Verdade pura! – Estes meus
Pensares que me atormentam
Só se acalmam e afugentam
Quando, olhando para os céus,
Elevo meu coração
Em sinal de imploração,
Pedindo absolvição
Dos pecados ao Bom Deus!...

Oh! Mui triste já contei
Algo de quando em criança
Desfrutei, com segurança,
Da inocência o que narrei!
Sou mui triste, na verdade,
E mais por ser a saudade
Que dá tédio a esta idade
A que sempre experimentei!...


Fortaleza, 01 de junho de 1.933
O poeta aos 20 anos de idade




M A M Ã E

Mamãe eu tenho um segredo
Pra lhe contar amanhã!
É lindo como são lindos os olhos
De minha irmã.
É belo como as florzinhas
Daquele pé de romã.
Mamãe eu hoje não digo
Mas eu lhe digo amanhã.

Foi Mamãe mesma quem disse,
Que os sonhos que a gente tem
Pra se tornarem verdade
Não se diz nada a ninguém.
Mas amanhã eu lhe digo
Se outra vez eu sonhar,
Porque assim são três vezes
Eu posso o sonho contar.

- Te deita meu filho e reza.
Prostar ao peito as mãozinhas,
Que Deus sorrindo aparece
no sonho das criancinhas.
Assim dizia beijando a mãe
ao lindo filhinho,
Que adormeceu como dorme
Nos pés de Deus um anjinho.

No outro dia cedinho
Marchetado em rubi,
Logo Henrique acordava
mamãe assim:
- Mamãe, mamãe me dê água,
que sede, meu Deus que sinto.
- Mamãe que doces gostosos
Comi do céu de onde vim.

Foi São Miguel quem levou-me
Para uma festa de Arcanjo,
Lá no céu onde os meninos
Brincavam por serem anjos.
Mamãe que rosas tão belas,
Que borboletas, que luz,
Que beija-flores tão lindos,
Mamãe eu disse a Jesus:

- Papai do céu, eu não quero
para a Terra feia eu ir!
E Jesus sorrindo me disse:
- Vai ver se tua Mãe quer vir!
- Vamos, vamos mãezinha,
Que Deus mandou lhe chamar.
Aqui mamãe só tem pranto,
Lá não tem de que chorar!

No outro dia a criança
Amanheceu morta no chão,
Qual vela branca apagada
Ao sopro da viração.
E pobre mãe que não viu
Seu lindo filho morrer,
Ficou aflita e chorosa
Quase louca a correr.

Foi tarde lembrar do sonho.
Procura o seu filho no berço,
Não encontrou rasgou o seio
Julgando acha-lo no peito.
A noite no seu outeiro
Foi assentar-se na praia
Esperando a criancinha
Onde a luz desmaia.

Alberto Nunes
Teresina, 21 julho 1966




TEUS OLHOS

Teus olhos, moreninha, são diamantes
Que incitam a noite a um esboço imenso,
E quando os vejo assim tão fascinantes,
Num êxtase ou num sonho eu te pertenço!

Não tem rival teus olhos ofegantes!
Fitando-os não sei se em tudo penso,
Porque eu só penso que sou dos amantes,
Que com as deusas tem firme consenso...

Peço-te pois, morena, o esplendor,
Que teus olhos a incitar amor,
Neste meu martirizado coração...

Vem! Dá-me um lenitivo à minha dor
- Só tu és o meu guia e salvador,
Na vida amarga e triste da paixão!



O S O L

Oh! Que maravilhoso esplendor!
Espalhas pela mata e pelos prados,
Num êxtase contemplo teus fulgores,
E cismo nos teus belos predicados.

Tu és a vida mesmo nos ardores
Do meu dia! – Por todos os lados
Produzes chuvas, amenizas dores,
Salvas o Mundo com bens sublimados...

Mas admiro mais as tuas cores
Quando, pela manhã – tão multicores,
Que me prendes os olhos para os céus.

À tarde, então, ao invés de teus calores,
Mostrando um ouro que provoca amores,
Me dizes: - Quanto é grande o Senhor Deus!




AO CHEGAR

Foi das serras que avistando a cidade
de Picos – terra amada, lar fagueiro –
Bati na mula para mais ligeiro
Sarar-me as grandes chagas da saudade!

Mui sôfrego, passando o meu ribeiro,
Entrei nas ruas com vivacidade;
Olhando os pontos que numa outra idade
Brinquei, contente, o mais feliz viveiro.

Cheguei. Entrei. Abraços apertados...
É que abracei meus entes adorados,
Na efusão da amizade padecida.

- E mamãe? ... – com um soluço vexadíssimo
Falei – “Foi a visita do Santíssimo...”
Não tardou, abracei mamãe querida...


Picos, 16.03.1934




GRILO INFAME


Ah! grilo desgraçado, és infame!
Como é que estragas a melhor das roupas
Que guardo para um dia festejado?!...
Porque os ternos rotos tu me poupas?

Minha roupinha que eu tanto zelava
Tem dois buracos irremediáveis;
De brim caro, de quatro mil réis,
Dificuldades incomensuráveis...

Estou sem roupa – Deus! – só tenho trapos,
E sem dinheiro, sem mesmo um vintém...
- Como ouvirei as missas dos domingos?
Meu Deus! Sou pobre como mais ninguém!

Quando terei, ó Deus, outra roupinha
Igual aquela que o grilo estragou?
Jesus amado, vós que fostes pobre,
Vede a penúria atroz em que estou!




RECONHECIMENTO

Sentindo que aproxima-se o dia
Da suprema alegria deste mundo,
Posto-me ante a imagem de Maria
Em reconhecimento o mais profundo.

Porque a graça de tão grande alegria,
Alcançada de amor santo e fecundo,
É o fruto do que eu sempre pedia
À Virgem Mãe para a vida neste mundo.

-Ajudar-me na luta pela vida
Desde o dia da minha despedida
Da casa santa do meu berço amado.

E ouviu-me a Nossa Mãe da Conceição
Agora, caminhando pro sertão,
Retorno ao meu povo adorado!...



Viajando, 12.03.1934
De Fortaleza para Picos.




O ORGULHOSO


Que personalidade patogênica!
Pior que tudo que no mundo existe
De vil e imundo, e sórdido, consiste
Em grossa paranóia neurogênica!

Tua figura, eternamente triste,
Empavonamente fotogênica,
Estorva sempre a melhoria eugênica
Da espécie humana que te não resiste.

O orgulho que te enfuna e te deforma
É a cátedra satânica que forma
O teu caráter caviloso e mal.

É homem só de nome, sim; és lama.
És a excrescência ilustre da má fama,
Contigo é certo que só mesmo pau.




SE TU SOUBESSES

Se tu soubesses, ó minha deidade,
Do que se passa pelos corações
Dos moços que não tem felicidade
Talvez sentisses minhas aflições...

Se tu soubesses que em meu peito invade
Um pranto enorme de desilusões,
Talvez tivesses de mim piedade
E me sorrissem tuas afeições...

Ai, do poeta assim desventurado
Que tanto ama e nunca foi amado!
Ai, do vivente que for como eu...

Se tu soubesses deste amor, querida,
Talvez me desses toda tua vida,
Porque sou teu, inteiramente teu!...




A VIRGINDADE DE MARIA

Sentaram-se no banco de um passeio
Dois moços em grotesca discussão.
Um fala contestando, sem receio,
A Virgem Mãe de Deus e a confissão.

O outro, bom rapaz, logo interveio,
Dizendo ser ilógico a asserção.
-Às vezes ficas preso, sem receio,
Então precisas obter perdão.

E vais ao Diretor, contar-lhes a culpa
E juras ser fiel e bom no estudo;
Confias no poder da autoridade.

E quanto a Mãe de Deus, não há desculpas!
Não dizes que só Deus pode com tudo?
Como não pode dar-lhe a virgindade?





NOIVO

O pai de minha diva deferiu-me
Aquela petição desajeitada.
Que belo! A Providência conferiu-me
A dita de noivar com minha amada!

Agora tudo vai mudar. Sorriu-me
Toda a felicidade desejada.
O amor, que tudo pode, conduziu-me
Aos píncaros da vida afortunada...

Vou construir meu ninho. Quero tê-lo
Tão puro e casto como o das pombinhas;
Tão puro e simples sossegado e belo!

E o mundo velho das desgraças minhas
Que fique por aí – hei de esquece-los,
Que o mundo, para mim, tem, novos limbos...





SAUDADES MIL

Penso: - qual triste é viver
Sem te ver,
Ó querida gente minha!
Não suporto o dissabor,
Desta dor,
O consolo não me aninha!

Saudade mil do meu céu,
Do que é meu:
Meus bons pais e meus irmãos
É deveras torturante,
Cruciante,
Cruciante para os Cristãos!...

A vida de Casimiro
- Eu a miro
Esclarece bem a minha:
-Ele, longe, escrevia
Poesia,
Versos à sua mãezinha...

Sem que possa eu o imito
Com o fito
De provar: -vivo a carpir
A saudade que dá tédio
Sem remédio,
Que se possa â dor fugir...

Quando de manhã eu vinha
À salinha!
O café então bebia,
Ao lado de meus pais
Ainda mais,
De meus irmãos... Que alegria!

Lembro-me da glauca terra
E da serra,
Do colear daquele rio!...
Também vejo as andorinhas,
Tão mansinhas,
Sobre a igreja, no cicio...

Deixar em tão moça idade
A cidade
De Picos do Piauí...
Pais, irmãos e torrão, berço...
Não exerço
Vida alegre estando aqui.

Uma mãe, o maior bem
Que se tem
Neste mundo de ilusão!
Por mamãe eu me sujeito,
Satisfação,
A qualquer execução!...

Quanto os santos que viveram
E morreram
Sofrendo de horrendo algoz,
Sem a Deus terem pecado...
Mas ficado
Com a lei que ele nos pôs...

...Sim! No céu pra se entrar
Expiar
Os pecados é mister!
-E eu tenho iniqüidades...
As saudades
Devo, pois, bem merecer!...

Fortaleza, 13 de julho de 1933





A ORGULHOSA

Não te orgulhes, ó mulher, por seres rica;
-Tua riqueza é mesquinha para a minha
pois, sou poeta, e poeta é inteligente,
e a inteligência é ouro que não tem fim!...

Não te orgulhes, ó mulher, por eu ser pobre;
-Eu não aspiro ouro terreno ruim...
eu só desejo a salvação da minha alma,
e neste mundo escrever versos assim!

Não te orgulhes, ó mulher, em tal grandeza...
Pois, tudo passa, até o mundo tem fim!
-E, se não queres sofrer eternamente,
Não te orgulhes para os pobres sem festim!...





VEM, QUERIDA - 01
ELEGIA


Da quadra inocente da vida de outrora,
Da vida que chora ou que ri só por fado,
Conservo, saudoso, na minha lembrança
De quando em criança te via a meu lado.

Tu eras amiga sincera e contente
E constantemente brincavas comigo.
Não tinhas o orgulho com que me torturas
Nem tinhas loucuras de fero inimigo.

Eu sou sempre o mesmo, quer queiras, não queiras
Voltar às maneiras com que me tratavas.
Sozinho eu fico revendo o passado;
Ele é o atestado das “bolas” que davas...

Tu passas bonita na minha calçada,
Pisando empinada e não falas comigo.
Que foi que te fiz para tal merecer?
Há mal em fazer poeminhas contigo?

Pesado demais o meu fardo de vida,
Assim sem guarida, sem luz ao relento...
Na minha existência tão dura, sombria
Só tenho alegria no meu desalento...

Mas se me voltassem aqueles ditosos
Momentos gozosos do nosso passado,
Querida, eu te juro, não te tocaria:
A mim bastaria brincar a teu lado...

O trono luzente que tens no meu peito
Confere o direito de seres rainha.
E com vassalagem eu te serviria
De noite e de dia na nossa casinha...

Não tardes, querida! Supere esse orgulho!
Embrulha-o e o embrulho humilhante espezinha!
Sê digna dos dias mimosos de outrora.
Oh! Vem, sem demora brincar de rodinha...






VEM, QUERIDA - 02

Da quadra formosa da vida de outrora,
Da vida que chora ou que ri só por fado,
Eu guardo em espinho ferindo a lembrança
De quando em criança te via a meu lado...

Tu eras amiga, gentil, inocente,
E alegremente brincavas comigo
Não tinhas o orgulho com que me torturas
Com o qual me procuras ser teu inimigo...

Não sou sempre o mesmo, embora não queiras
Voltar às maneiras com que me tratavas,
Sou brando, não posso rever o passado,
Ele é o atestado do quanto me amavas...

Tu passas ereta ao pé da calçada,
Em forte pisada não falas comigo...
Que foi que te fiz para tal merecer?
Será por dizer que sou teu amigo?

É duro demais se viver esta vida,
Assim sem guarida em completo relento...
Não quero não devo ser reles figura,
Sabendo da agrura pra sempre erguida...

Assim é muito triste para mim o passado,
Definho ao lado da flor do viver...
Terás alegria, eu te felicito,
Meu pobre prestígio não tardas a ver...

Da quadra inocente da vida de outrora,
Da vida que chora ou que ri só por fado,
É que em plangentes idílios de moço,
Me vem o esboço por ti torturado.





S O U T R I S T E

O mundo forte não cansa na lida,
Segundo diz a própria matéria;
Mas eu, na idade juvenil da vida,
Vivo lutando numa vida “séria”...

E a força então, em que fase consiste,
Se sou tão moço e – débil, sem pujança?
Deus, inclemente, diz que ela existe,
Porém o pobre só tem esperança...

A força, pois, é coisa que não tenho,
Porque no mundo tudo é vil e vazio!...
Assim espero carregar o lenho
Da minha cruz até o meu Calvário.

Já tenho a força só em ser tão pobre,
Conheço a marcha de quem goza a vida.
Tendo na mente o irrevogável dobre,
Eu não terei a salvação perdida.

E sou um moço embevecido, ardente,
A sonhar glórias as mais divinais;
Não sou Bocage, mas unicamente,
Um brado contra o mundo vil, falaz.

Porque não devemos viver qual Ahasverus,
Somente nos meros sentidos da vida.
Não quero não devo ser reles figura,
Sabendo da agrura pra mim sempre erguida!...

Assim é mui triste pra mim o passado,
Definho ao lado da flor do viver...
Terás alegrias, eu te felicito!
Meu pobre prestígio não tardas a ver!...

Da quadra inocente da vida de outrora,
Da vida que chora ou que ri só por fado,
É que, em plangentes idílios de moço,
Me vem o esboço por ti torturado.






MARTÍRIO

Minha vida é tão dolorida,
Tão cruel e tão sentida,
Quando penso nos teus olhos...
-É deveras torturante
O viver de pobre amante,
Sentindo tantos abrolhos...

Ai tristezas! Ai martírios,
De prolongados delírios,
De desprezo e esquecimentos!
Ai! Dores cruéis! Pungentes
Nos meus tristes ambientes
De completo isolamento!

Amor! Que horrível amor!...
Que amor de tanta dor
Vivo, vivo a experimentar!
Tão sozinho, neste exílio,
Sem alento, sem auxílio,
Sem fé... Neste delirar!

Como foste pura e santa
Naquela vez, que me encanta
Só em me lembrar agora,
Quanto me juraste amor!
E já vives num torpor,
Não te lembras dessa hora?...

Ai! Amor de desenganos
O dos falsos levianos,
Olhos sedutores, belos!
Ai! Que dor tudo me faz
-Ela não se lembra mais
Que comigo teve anelos...

Foi num belo mês de julho,
A sos tínhamos o arrulho
De andorinhas inocentes,
Que eu, de amor sempre faminto,
Junto a ti, junto a teu cinto,
Tive momentos ardentes...

E tu te esqueces, ciente
Duma noite sorridente
Em que sentimos em céu?!...
Não te lembras mais daquelas
Palestrinhas das janelas
Em que eras minha e eu teu?

Não é possível, morena
Minha encantadora Helena,
Que não tinhas na lembrança
Aquele baile de Maio
Em que quase num desmaio
Me beijavas a aliança!...

Não é possível, amor,
Minha verdadeira flor,
Que tu te esqueças, tão cedo
De dois anjos sorridentes
Uma deusa e um aedo!...

Demais, agora me lembro,
Foi a quinze de setembro
Que nos ébrios devaneios
Duma valsa sedutora,
Pizei... Não sei como fora,
Tive extáticos enleios...

Pisei... pisei em teu pé;
E sem mesmo te ver, te
Perdia... Perdia a mente.
Corei. Pedi perdão, posto...
Respondeste-me “era gosto
se pizasse novamente”...

É quase incrível, Helena,
Minha querida morena,
Esta tua indiferença!...
Já que tens mau coração;
Me passando esta lição
Em ti não terei mais crença!...

Quantas cousas não se sentem
No deslizar, tão fremente,
Da vida nas seduções!
Quantos entes a sofrerem,
Chegando mesmo a morrerem
Pelas suas afeições!






BENEFICÊNCIA SOCIAL


Aurora límpida. O Sol se levanta.
A passarada em voz sonora canta
A Deus nas alturas;
O mundo acorda do sono das trevas;
Trabalhadores, ávidos, em levas,
Vão às aventuras...

O camponês à sua roça corre,
Todo legume com os olhos percorre
Com a mente a julga-lo;
Na praça cada qual ja se ocupara,
Na estrada o viajante a conquistar
Léguas a cavalo.

Nesse dia de tanta poesia,
O “seu” Mandi, mui longe de alegria,
Não tinha um só pão;
E triste, sem saber onde almoçar,
Hesita, sem certeza do jantar,
Numa objeção...

Atrás de ganho corre até a rua,
E pede um “jeito” aos da amizade sua
O que lhe não dão.
Pede emprego de toda a natureza,
Não vê quem lhe sacie a fome acesa,
Cresce-lhe a aflição!...

Assim, luzente, sem serviço algum,
O “seu” Mandi, na sentença incomum
De não mais comer,
Vê os filhinhos a choramingarem,
Fere-lhe a dor de nada mastigarem
E diz: “Que sofrer!”

Acanhado, ele não vai mendigar;
Vem a tarde e sem nada mastigar
Fica tresloucado...
Corre a casa a procura d´um objeto,
Não acha, pois vendera até o espeto
De fazer assado...

Pensa, não vai, pois nunca mendigou;
Não achar jeito pr´o que nunca usou,
Nem supôs usar!...
Acha melhor mandar os seus filhinhos
Quebrarem os penosos jejunzinhos,
Pedindo a andar...

Passam-se os dias. Hórridos momentos!...
“Seu” Mandi tem sofrido fragmentos,
Acha-se desfeito...
Tem vivido à mercê d´um seu compadre,
Mas já ouviu da boca da comadre:
“- Acaba-se o jeito!”

Então, no meio de tanto penar,
Vem-lhe a idéia de ao padre ir falar
Sobre a caridade
Da obra divinal de São Vicente.
Corre, vai receber, sofregamente,
A santa piedade...

Assim fazendo o velho Mandi vive,
E a gordos burgueses sobrevive,
(Causa original).
Todos os dias tem o seu abrigo!
Tem quem lhe core com o caldo, com o trigo,
Nisso, tão fatal!

Passam-se os tempos; vem enfim o inverno.
O “seu” Mandi, com um pedido terno,
Planta um quintalejo.
O inverno é bom; o milho e o feijão crescem
As touceiras do arroz o cacho erguem
No melhor desejo...

Vem a colheita, “seu” Mandi se farta:
Deu tudo bom, não teve nem lagarta,
- Parece milagre! -
Tudo agora é xenxém pro torturado,
Que há meses não mais tinha pescado
Ao menos um bagre...

Vai o nosso Mandi à Conferência
De São Vicente de Paulo à clemência
Grato, agradecer.
E penhorado diz, textualmente:
-“Quero ser vicentino, eternamente,
Pois, grato ei de ser!...”

Do bem de São Vicente espalha o bem
O bom do “seu” Mandi, que sempre tem
Na mente a grandeza
Da sociedade sã dos vicentinos,
Em livrar pobres de cruéis destinos,
Com tal gentileza!...

Então, um dia, “seu” Mandi exclama:
- Oh! Grande santo! Quem não te proclama
Vicente Bendito?!...
Mui grande é o teu poder sobre a pobreza,
Eu sou o exemplo de tua grandeza,
Nada em ti é mito!...

E vêm auroras, dias como aquele,
Poético e alegre em que só ele,
Mandi, não cantava.
A passarada seus trinados solta,
Ele desperta e ao seu trabalho volta
Sim volta ao que amava.

Efetivamente é a Sociedade
De São Vicente a mor felicidade
Pra vida dos pobres;
Devemos envidar grandes esforços,
Cooperando pr´os seus fins gloriosos,
Por serem tão nobres!...






VERSOS DE AMOR

Oh! Que dias dolorosos
Esses que passei ausente,
Amando como um demente
A miss de minha terra!
Oh! Que dias de tormentos
Passem sem ver minha bela,
A verdadeira donzela,
Que aos meus olhos tudo encerra!

Predicados como os teus,
Tão virgens próprios de santa,
Poeta algum, jamais canta
Poema que lhe faz jus,
Porque são misteriosos,
Mas levado por paixões,
Não me furto a descrição,
Pois sou mártir e tu és a cruz.

Teus olhinhos tão espertos,
Atraentes, excitantes;
E tuas faces amantes
Convidam-me a acrescentar
Estes versos de louvor
Ao perfil de encantos.
Mas, pergunto-me: - Com quantos
tu podes acalentar?

Oh! Não creio que respondas
Negando-me o teu amor;
E não me faças supor
Que hesitas em me querer...
Mas, se não queres cantar
O que agora estou cantando,
Diz apenas me olhando:
Contigo eu me quero ver!...

Se é que dizer me confortas
E feliz serei então;
Dando-te o meu coração,
Poderei gozar a vida.
E juntinhos, bem juntinhos,
Tu dirás, alegremente:
-“Quem viver assim não sente
Uma vida empobrecida”...

Oh! Que dias dolorosos
Esses que passei ausente
Amando como um demente
A miss de minha terra!
Oh! Que dias de tormentos
Passei sem ver minha bela
- A verdadeira donzela
Que aos meus olhos tudo encerra!






MEDITAÇÕES

Eu não trouxe boa sorte
Pra viver aqui na terra;
Pois aqui só mesmo o forte
É que vence, é que descerra
A amplidão dos mil castelos
Da ventura, que são pelos
Domínios róseos e belos
Do saber que tudo encerra.

Eu adoro o meu sertão,
- Estas matas, estes prados...
Mas, meu Deus, sinto aflição
Por ser um dos desgraçados
Que desejam Hipocrene,
Esta fonte tão perene,
Do Universo a mais solene,
Por ser vida e amor alados...

Porque vim nascer aqui
Num grosseiro e rude brejo
Dum rincão do Piauí?
Foi pra ser um sertanejo?
Pois, assim, esta natura,
Que me dá tanta tortura
Não devia dar-me a altura
De chegar ao que desejo!...

Oh! Se os meus dias ditosos
Consistissem em ver os meus
Horizontes tão brumosos!...
Se o Onipotente Deus
Me criasse como a tantos,
Sem saber dos mil encantos,
Da poesia os seus cantos,
Da cultura os lumes seus...

Então eu, muito contente,
Obscuro a tais desejos,
Gostaria, ardentemente,
Dos costumes sertanejos.
Não veria que a bruma
Veda tudo, formando uma
Sombra negra que, em suma,
Só se encontra nestes brejos.

Mas eu sei que do outro lado
Dessas brumas há uns céus;
Tem um lindo Eldorado
Com esterpes e Orfeus...
Porém, não desobedeço;
Paciência é o que careço.
Assim penso que careço
A atenção do Grande Deus...





CONHEÇO EU, APENAS...

O tempo requeria bastante precaução;
Havia indicação de chuvaradas para a tarde.
E já, precisamente, batiam doze horas
Quando o Chico, às esporas, partira em seu “Alarde”.

Seguira pra cidade em completa disparada
Para alcançar a amada família, não distante.
Era o costume belo de ouvir a missa aos domingos.
A chuva, em grossos pingos, alcança o itinerante.

E logo na chapada pararam os viajantes,
Debaixo de um abrigo. “Antes não tivesse vindo”,
Diria o disfarçado cristão, arrependido
Por ter assim saído ante um temporal surgindo.

Mas isso, não. “Seu” Chico, católico como era,
Nunca! Jamais dissera, em aperto, tais loucuras!...
Antes oferecia, com a família, ao Senhor
As suas obras, óbices, planos e torturas.

Que gente encantadora! A Teresa e Dona Alina.
A santa e pequenina família de “seu” Chico.
Tão boa a Teresinha porque, mesmo educada,
Não era espevitada, nem nunca fez fuxico.

E era linda e amável... seu rico possuía
A doce poesia da mocidade em flor.
Como a manhã desperta erotismo à natureza,
Ela era a sutileza de um erótico langor.

Chamavam-na de “miss”, o que era compreensível,
Mas tinha, imperecível, um velho e puro amor;
Seu grande alheamento a tão importante assunto,
A mim não me pergunto, que não sou delator.

Teresa era devota, puríssima, inflexível,
Fazia o impossível pra não olhar ninguém.
É que desde o colégio que seu coraçãozinho
Consagra um amorzinho, que muito lhe convém.
Quem teve tal ventura? – O senhor Brasiliense
Um pobre amanuense simplório da cidade.
Há muito tinham dado a palavra em juramento,
E com devotamento, provavam lealdade.

O amor tem uma face chamada sofrimento
Que dá o desalento, suscita a provocação,
Pois é que, na cidade, Teresa suspirava
E mesmo até chorava cruel desolação.

Partira Brasiliense a cumprir o seu destino
Ficando em desatino a formosa Teresinha;
Também ele sofria ou sentia mais que ela,
Que só por merece-la deixava a pobrezinha.

Seis anos e ele atento ao contrato voltaria,
E logo casaria, cumprindo o compromisso.
Já tinha certo o emprego, no Rio de Janeiro,
Embora em verdadeiro viver de submisso.

Distante, revelava as saudades cruciantes
Nas grandes e chocantes missivas que enviava.
Dois anos recebeu boas cartas de Teresa,
Depois... a natureza silenciosa e brava.

Encontrando-se “seu” Chico em paragens mui distantes,
Lá onde hilariantes boatos garantiam
Haver muito dinheiro e haver muita riqueza;
Também onde Teresa e um João se casariam...

Conforme o compromisso, regressa Brasiliense,
Não crê, não se convence do logro das quimeras.
Descobre o paradeiro da deusa da bonança
E corre a ver se a alcança, rompendo matas feras.

Rumina mil castelos, sozinho, viajando:
- “Serei feliz... Chegando, vou ser bem recebido....
Converso satisfeito e demonstro ser o mesmo...
Não vou assim a esmo; Serei correspondido...”

Chega afinal. Na sala brinca uma pequenita.
O desgraçada a fita: -“Que rosto parecido!
Acompanhando um homem Teresa sai à porta,
E queda, quase morta, cai perto do marido...

Momento indescritível e desesperador!...
Coalizão do amor com a infidelidade!...
Ninguém acertaria em cheio o que passaram
Aqueles, que afundaram o amor na leviandade.

Ninguém. Por mais arguta que seja a inteligência
E pobre para a essência do amor que não foi seu.
Conheço eu, apenas, a dor do amanuense,
Porque o Brasiliense que chora aqui sou eu...






FIFINA


A Fifina, galhofeira, não quer ser moça de reza.
Vive sempre na cegueira de ser grande na beleza
De que é possuidora, com minestra sedutora.
Defendi-a, certa vez, de horrível adultério.

Certo indivíduo, descortêz, quis forçá-la ao mistério
De ser moça maculada, dos rapazes namorada...
É verdade que Fifina relutou exemplarmente.
Porém ela não se inclina a qualquer tipo demente.

Talvez seja esse o motivo do seu gesto tão altivo.
Quando em pleno carnaval, la na praça da palmeira,
Se envolvia a Capital nas taças da bagaceira,
Notei dois jovens sorrirem, e depois assim dizerem

- Já é hora, Pedregoso! – Sim, Fifina, já é hora...
Preparemo-nos, pr´o gozo; Somos um só corpo agora...
Bote a máscara, portanto, eu a espero neste canto.
Pedregoso, um goza a vida, era noivo de Fifina.

E já era conhecida a amizade como sina,
Porque o ato conjugal seria após o carnaval.
O sujeito que tentara ultrajar miss Fifina,
Esse colóquio escutara vira os dois e tudo atina.

Pôs, ativo, mãos à obra, com astúcias de sobra.
Preparou-se, muito lesto, e ficou-se donde vinha
A Fifina, no funesto pensamento de doidinha.
Encontrando-a, venturoso, simula ser Pedregoso.

-Esperaste-me no canto? Eu tardei, não é assim?
-Não; até não foi lá tanto. Não percamos tempo, sim?
Lá se vão mascarados, no pecado embrulhados.
Por falarem diferente, nessa voz carnavalesca...

A Fifina, bem contente, não dá pela ação burlesca
Do sujeito seu inimigo que se torna bem amigo.
Alta noite, num dos bares, descansando numa alcova
E isolados de outros pares, eles dois têm uma nova:

-Tiremos isto da cara, ninguém aqui nos repara...
-Quem? Que vejo?! ... É o senhor?! – Fala, atônita, Fifina.
Quer sair pro corredor, lamentando sua sina.
O sujeito quer mata-la; Ela grita, já não fala...

Socorrendo-a os vizinhos, na escuta dos gritinhos,
Viu-se ali, o Pedregoso, porém, foge: era o
Carlinhos seu bom pai, o criminoso. Mas Fifina
– mui lamento não terá mais casamento






A RENÚNCIA DO PRESIDENTE


Toda renúncia exige fortaleza
De espírito, coragem, sacrifícios.
E é necessária se se tem certeza,
De que nos traz melhores benefícios

E Jânio Quadros, com sua agudeza,
Sentiu de seus fracassos os indícios
E preferiu deixar de ser grandeza,
A nos causar maiores malefícios.

Em crise, confessando-se impotente
Para aplicar seu método fecundo,
Renunciou o grande Presidente.

Se o fez movido pelo amor profundo
Que nutre, humilde, pela sua gente
Seu gesto não tem símile no mundo.





SONHO


Trabalho e ganho o pão, honestamente.
Deveres cumpro à risca; e só por eles,
Suporto a vida, humilde e santamente,
Opondo-me ao que é sujo, vil e reles.

Momentos de ventura, docemente,
Envolvem-me. Pressinto, neles,
As alegrias que a família sente
Por ter exemplos que não é daqueles...

Mas nunca tenho promoção alguma.
Por falta de talento ou qualidade,
Desconhecido fico em minha bruma.

Contudo sonho com felicidade,
Com melhorias, ascensões – em suma
Com mais dinheiro e provida equidade.

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MEU PAI


Pobre pai! No limiar dos sessenta,
Com doze almas que do mundo são herdeiras,
E doze corpos que ele ainda alimenta;
Não fraqueja desde as almas primeiras.

Não titubeia, ante a brutal verberação,
Deste mundo insano e deveras repelente;
De longa época remonta sua ação
De viver, de criar filhos, em fremente

Luta; despojado do que é seu,
Para a vontade daqueles que mais ama.
No entanto, sua pujança e fibra austera,

São os símbolos dos olhos meus,
E sua vontade férrea é o brilho da chama,
Que não se apaga. Meu pai é quase uma quimera!


Jeovah de Moura Nunes