Thursday, February 15, 2007

M E U P A I

“Ele é alto. Possuidor de um belo e nobre porte. Assim como é possuidor de uma rara inteligência, que eu não chamaria somente rara, mas inspirada talvez por Deus. Possui muitos cabelos brancos. Atualmente quase todos os seus cabelos são brancos, mostrando ao mundo as preocupações, os sofrimentos e a vida agitada por que passou. Anda sempre vestido de terno. Talvez por hábito, mas incrível, nunca o tira, exceto para dormir. Desde criança que eu o admiro. Vejo-o como um herói dos contos românticos e fico estupefato quando tomo conta da realidade, que meu pai passou em toda sua vida. Não foram reais? Então porque imagina-lo um herói, sendo ele já um herói? Um herói anônimo legitimo. São poucos os que o conhecem e esses poucos ficam boquiabertos quando dialogam com papai. Não é padre, mas conhece o latim e prega com êxtase o Evangelho. Não é homem publico, mas conhece a política, talvez mais ainda que aqueles a fazer dela sua vida. Em resumo: discute-se com papai qualquer assunto político e ele tem a sua opinião formada. Não abre a boca para dizer coisas inúteis. Quando ele vai falar, eu preparo o meu bornal auditivo porque sei que cairão somente, nesse bornal, palavras de alto quilate gramatical.
É assim o meu pai e muito mais. Gostaria de ser um Humberto de Campos, ou um escritor qualquer para poder descrever aqui o belo carater que possui o meu honrado pai. Mas, infelizmente a minha intelectualidade não chega a tal ponto. Posso afirmar, entretanto que o meu pai é um homem, cuja têmpera o mundo quis esconder, porque este mesmo mundo o reconheceu grande demais para a mesquinhez a que está submetido atualmente.
Jaú, 31 de julho de 1965
Jeovah de Moura Nunes”
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Caro irmão Douglas,

"Reproduzi o velho texto acima, ainda no verdor de meus vinte anos, porque fiquei deveras emocionado ao me deparar com a biografia de meu pai, Alberto de Deus Nunes, neste Jornal dos Bairros, datado de 16/30 de Abril do corrente ano, (2002). Ainda mais com a sua antiga fotografia, cujo olhar, sereno olhar, deixou-me atônito. A ponto de ir as lágrimas.
Ele parecia me repreender. Parecia querer falar comigo. Parecia querer sorrir.
Já fazia muito tempo que sequer ouvia falar dele. E quando me lembro, às vezes na solidão de meus afazeres, a emoção toma conta de mim como se ele estivesse ali presente. O olhar de um pássaro. O olhar de um felino. O olhar gostoso de olhar ao falar de Jesus. O brilho daquele olhar ainda não me abandonou. Nem irá me abandonar. Deus é testemunha.
O texto do Padre David é arrasador! Ele foi muito feliz em suas colocações. Aquele texto é meu pai em pessoa. Narrou com detalhes o episódio que ainda ecoa nos meus ouvidos: a passeata, os xingamentos, as batidas fortes na porta. Minha mãe abraçada a mim e à Nainha, minha irmã, pedia calma e nos confortava. A rua encheu-se de gente num tumulto apavorante. Meu tio, o Zuzinha, ficou próximo à porta com uma peixeira na mão. Meu pai o repreendia dizendo que aquilo era inútil. A confusão demorou. Parecia não terminar. Foi a noite mais longa de minha vida.
Nos dias subseqüentes meu pai notou que era ‘persona non grata” em Picos e decidiu partir para sempre. Já próximo de sua morte, anunciou que desejava ser enterrado em Jaú, uma auspiciosa cidade do interior de São Paulo, onde vivera por muitos anos.
Hoje, Picos é outra. As pessoas são outras. E se existem as pessoas daquela noite, vivendo aí, elas naturalmente nem se lembram mais. E se lembram, certamente será como algo sem importância. Para nós, nossa família, entretanto foi como uma encruzilhada em nossas vidas. Foram tomadas decisões irreversíveis. Partir do lugar em que se nasce não é fácil. Chegar em lugares estranhos pior ainda. Nós, seus filhos, ficamos sem ter o que todos têm: o calor amoroso das tias, dos tios, dos primos, dos avôs e avós. Enquanto ouvíamos as crianças paulistas dizerem: - Hoje vou dormir na casa da vovó! Ou das tias, ou dos tios. Nós ficávamos a lembrar de nossos parentes distantes. O tempo aos poucos foi se encarregando de muitos de nós, esquecerem de todos. E nunca mais voltar ao Piauí.
É triste. É muito triste ser banido de sua própria terra! E também é triste chegar em novas terras, desconhecidas, principalmente no interior paulista, numa época em que a discriminação existia. Era palpável. Era sufocante. Tanto é verdade que nas escolas, nós crianças nordestinas, não éramos aprovados quando o ano terminava. De doze irmãos apenas um conseguiu chegar a faculdade, ainda depois de velho. Isto é: depois que o preconceito se foi. Mas, nenhum de nós passou necessidades. Nosso pai proveu tudo. E até hoje vivemos bem graças a Deus!
Apesar dos pesares"!

Jeovah de Moura Nunes
Jaú, abril de 2002

Jeovah é escritor, poeta e jornalista. Reside em Jaú – SP.
E-mail: jeovahmnunes@hotmail.com

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